quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

AS CRÓNICAS DO CONIXA (I): O menino que desafiou o tempo

Quando nasce uma criança, é uma alegria para os pais que pensam logo no seu enxoval, no nome que lhe hão-de dar e na sua alimentação para que não lhe falte nada.
A crianças cresce, cobrindo-se de brinquedos, ao contrário de antigamente pois ninguém se preocupava com a segurança dos mesmos, porque nem todos possuíam este privilégio.
Naquele tempo ainda havia ricos e pobres, pois Nisa e o Alentejo eram de meia dúzia de senhores em que os pobres não tinham acesso à saúde, não podiam comer uma refeição equilibrada e os filhos não tinham brinquedos. Era o dinheiro que estava mal dividido. 
Hoje, as crianças mal nascem já têm computadores e jogos electrónicos, transformando-se em peritos da tecnologia moderna, não esquecendo que são esses jogos que desenvolvem a inteligência, embora haja muitas crianças que são vítimas de certas doenças ocasionadas pelo uso intensivo desses mecanismos e pelo stress dos jogos de computador.
Outro aspecto maléfico e pernicioso do uso, indevido, dos computadores, tem a ver com o facto de muitas crianças, guiadas pela curiosidade e sem nenhum controlo ou vigilância, caírem no abismo da pornografia infantil, sem que os pais, tantas vezes, se dêem conta do perigo a que estão expostas os seus filhos.
Eu brincava com cascas de laranja e com tudo o que me parecia adequado e era, assim, uma criança feliz, tal como todas as crianças pobres. A entrada na escola marcou-me, por ver os pais dos outros meninos, levá-los à escola no primeiro dia de aulas, pois a minha mãe andava na “féga” (colheita da azeitona).
Lembro-me bem. Ainda não tinha sete anos, naquele dia 7 de Outubro de 1955, em que o frio de Outono já se fazia sentir, anunciando a chegada do Inverno, mais rigoroso. E lá ia eu, de pé descalço, com uma saca de sarapilheira na cabeça, servindo de impermeável para me abrigar da chuva.
Eu não tinha mala da escola, era um saco de farrapos, feito por minha mãe, no qual transportava a pedra e o lápis. Os livros foram-me fornecidos por intermédio da Caixa Escolar e a refeição do meio-dia era oferecida pela Cantina Escolar da Fundação Lopes Tavares. Deus tenha em bom descanso, o senhor Dom António!
Neste quatro anos de escola aprendi muito. Aliás, aprendi tudo, porque os meus pais e os demais não tinham meios para nós irmos mais longe.
Estou contente, por estar ainda cá e ter acontecido o que aconteceu, de aprender o que aprendi e de poder seguir de perto a evolução da minha terra e do meu país.
Naquele tempo, em certos lares pobres, dividia-se uma sardinha em três; o trabalho era árduo e escasso e os nossos pais, muitos deles foram obrigados a dizer: basta!
Não estavam dispostos a comer mais pão do que o diabo amassou e emigraram para Lisboa e suas redondezas. Nessa época já em Nisa se começava a sentir alguma evolução, com a construção do Hospital, Tribunal, Casa do Povo e outras repartições de interesse público, muito embora não houvesse liberdade.
A Praça da República, o nosso Rossio era o centro do mundo, o palco de feiras e mercados, onde os carrocéis  e os circos que por lá passavam faziam vibrar a garotada.
Nessa altura, ainda me lembro e hoje, aqui, presto a minha homenagem ao fundador do Rancho Típico das Cantarinhas de Nisa, o senhor Rodrigues Correia, um nisense de acolhimento que deixou descendentes nascidos em Nisa e foi director do Teatro Moiron, um teatro desmontável que permaneceu cerca de um ano nesta mesma praça, onde ele e toda a sua família faziam o elenco das peças teatrais como a “Rosa do Adro”, a D. Inês de Castro, As Pupilas do Senhor Reitor, Zé do Telhado, entre outros dramas ou comédias que fizeram palpitar o coração dos nisenses.
Pouco tempo depois rebentou a Guerra do Ultramar e na idade propícia também não pude fugir às obrigações militares que me conduziram até Angola. Ao mesmo tempo começava também a emigração clandestina para França e Alemanha. Foi um tempo difícil, de luta, de muitos sonhos e esperanças que levaram para fora da nossa terra, mais de um terço da população do concelho de Nisa.
Abandonaram o rincão que os viu nascer e abalaram à procura de uma vida melhor noutras paragens. Eu acabei, mais tarde, por arriscar, numa aventura que foi boa, por um lado e má, por outro.
Consegui, fora do meu país, aquilo que, talvez, não conseguisse em Portugal. Teve custos, é certo, o mais doloroso é ter um filho e uma filha casados com cidadãos franceses, que me deram três netos. É como se estivesse com o coração “cortado ao meio”, dividido, entre a terra onde nasci, as minhas raízes, e a terra que tão bem me acolheu e onde despontam, também, novas e promissoras raízes.
O meu dilema é entre voltar e desfrutar a liberdade que o 25 de Abril nos deu ou ficar e acompanhar aqueles que me são mais queridos.
Num e noutro lado, é o desenvolvimento da Europa que está em jogo. A vida, está sempre connosco: quando perdemos, quando vencemos e quando caímos e nos voltamos a erguer. Somos pessoas, somos humanos!
Não se deve condenar ninguém sem a mesma ser julgada e enquanto tal não acontecer a mesma pessoa será sempre inocente.
A bondade só se descobre na idade adulta. É por isso que aconselho e alerto para situações que me parecem inaceitáveis e em que a gravidade dos factos ainda passam despercebida para alguns pais e para muitos munícipes, fazendo de conta que tudo corre bem e na realidade não é assim.
· “Muitos homens nascem cegos e só se apercebem no dia em que uma boa verdade lhes fura os olhos” – Jean Cocteau (1889- 1963)
· “Quando já não há remédio, há ainda esperança” – Jean Pierre Ribes, 1946)

* António Mourato (Conixa) - "Jornal de Nisa" nº 249 - Janeiro de 2008