Completou em Julho, 95 anos, este homem de rosto largo e de
mil vivências. Andou pela França e pela Espanha, aprendeu a ler, já homem
feito, nas aulas regimentais, enquanto impedido do general Domingos de
Oliveira, máxima figura militar no tempo de Salazar. Ao gosto pela leitura
juntou um outro ligado às "coisas do campo": a descoberta das
propriedades curativas das plantas e das argilas. A paixão pelas "ervas
milagrosas" na versão do ti Domingos Semedo de Matos.
Nasceu em Montalvão, ainda o século vinte estava na
puberdade, mas mostrava, já, as imagens dos conflitos armados, das doenças e da
crise económica, mundial, que iria influenciar a vida de Domingos Semedo de
Matos, nascido numa família de fracos recursos e obrigado a compartilhar com
três irmãos a côdea de pão do sustento familiar.
Vida extrema, difícil, num lugar do interior, distante de
tudo, até do essencial para se viver.
" Os meus pais trabalhavam no campo, eram jornaleiros.
Vivia-se mal e logo aos sete anos fui guardar gado. Estive como pastor até aos
10 anos e aos 11 fui trabalhar para as grandes obras de construção da Barragem
da Póvoa e Meadas, como servente. Havia lá muita rapaziada de Montalvão, da
Póvoa e Meadas e de Castelo de Vide. Dormíamos lá e cada um cozinhava para si.
O meu pai estava em França e juntou-se comigo a trabalhar na Barragem. Um ano
depois resolveu ir para a ceifa em Espanha, na serra de Santiago e eu fui com
ele ganhando menos mas fazendo o mesmo trabalho que os homens. Foi esta a minha
escola. Quando terminou esta campanha, o meu pai resolveu ir novamente para
França e eu acompanhei-o. Fomos a salto, éramos sete só de Montalvão, isto em
1929. Andámos muito tempo a pé e de comboio. Em Hendaya havia vários
empreiteiros à espera de quem chegasse de Espanha ou de Portugal para trabalhar
e nós fomos contratados para umas minas de perto de Marselha. Era um trabalho
muito duro, mas compensava. As minas produziam um comboio de carvão, todos os
dias, extraído à força do braço.
Legalizámo-nos ao fim de 22 meses e podíamos
trabalhar em qualquer sítio de França. Foi assim que conheci um pouco daquele
país, como Lyon, Paris, Bierzon. Regressámos a Montalvão ao fim de três anos.
Aqui toda a gente se ocupava a trabalhar no campo e nós fizemos o mesmo em
todos os serviços, a trabalhar de sol a sol.".
Chegava a idade da vida militar, dever a que Domingos Paixão
não pôde eximir-se.
" Em 1936, com vinte anos, fui à inspecção militar com
muito gosto, pois não sabia ler, tinha uma grande fortaleza e sempre ouvira
dizer que se aprendia a ler na tropa. Era o que eu mais queria. Depois da
instrução fiquei colocado na Companhia Tripomóvel Montada. O quartel dava
impedimentos e eu tive a sorte de ficar como impedido do senhor governador
militar de Lisboa, general Domingos de Oliveira. Tirei a 4ª classe, fiz uns
exames maravilhosos e ao mesmo tempo tratava de quatro cavalos do senhor
general que muito me considerava. Depois de três anos na tropa, já podia meter
os papéis para qualquer serviço e assim entrei para a GNR em 1941, onde estive
27 anos. Desde Lisboa ao Alandroal, Crato, Nisa, Marvão, Gáfete e novamente
Lisboa."
Casou aos 26 anos, tem quatro filhos, 11 netos e 7 bisnetos.
A esposa morreu-lhe há 14 anos e reformado desde os 52, Domingos Paixão
retornou a Montalvão, às terras da raia. É aqui, verdadeiramente, que começa a
paixão pelas ervas com poderes medicinais.
"Eu herdei da minha mãe o gosto pelas plantas. A minha
mãe com 83 anos ainda usava as ervas dos campos para uso dela e para dar às
vizinhas. Há 80 anos atrás quem que tinha posses para ir à botica? Além dos
tratamentos com plantas e as mézinhas caseiras serem muito mais eficazes. Era
assim que tratavam as maleitas, qualquer doença naquele tempo. Eu sempre que
vinha a Montalvão, ainda estava na GNR, o meu sentido era para as plantas. Comecei
a tratar pessoas com 28 anos e não comecei mais cedo porque a vida não
permitia. Comecei por massajar em qualquer parte do corpo, sem ter qualquer
conhecimento de medicina e tenho tratado muita gente, todos aqueles que me
procuram."
Não sabe explicar o "dom", sabe, isso sim que
gosta de tratar as pessoas e que tem tratamento para quase todas as doenças,
desde que o paciente saiba dar tempo ao tempo.
"Pelas portas por onde passei desenrasquei as pessoas
que me pediram, fosse endireitar um dedo do pé, as costelas, o pescoço, as
costas ou qualquer extensão fora do seu lugar. Vou todos os dias para o campo e
conheço todas as plantas, mais de 300. Tenho um ficheiro escrito à mão, onde
explico o nome das plantas, os fins para que servem, as doenças que combatem e
como devem ser aplicadas. Conheço também as propriedades terapêuticas da
argila, pois há 40 anos que trabalho com ela, um dos mais poderosos meios
naturais de atacar as doenças e que pode ser aplicada em qualquer parte do
corpo humano e até nos animais com fins curativos".
A sua casa no Bairro do Bernardino, na entrada de Montalvão,
é um verdadeiro "museu das ciências naturais ". Há argila de todas as
cores, uma variedade incontável de plantas, devidamente catalogadas com os
nomes científicos e populares, com a descrição pormenorizada dos fins a que se
destinam. Possui mais de 900 caixas com ervas, uma quantidade enorme de
diversas argilas e este valioso espólio que representa muitos anos de trabalho
dedicado é a sua grande preocupação. Agora, com mais de 95 anos, o ti Domingos
gostaria que alguém se interessasse pela sua arte das plantas curativas, a
divulgasse e que não se perdesse tão valioso acervo do nosso património
cultural tradicional.
Deixa, por isso, um apelo, quer aos profissionais e comerciantes
do ramo das plantas medicinais, quer às entidades autárquicas, no sentido de
não deixarem que se perca um espólio que considera valioso, não só do ponto de
vista económico, mas, sobretudo, carregado de afectividade.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 7/9/2011