quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

NISA: Pequenos retratos da Emigração

Este parte, aquele parte / E todos, todos se vão. / Galiza, ficas sem homens / Que possam cortar teu pão.
 – Rosália de Castro (poetisa galega)

Eu fui p´ra longe, p´ra muito longe, o que eu passei para lá chegar...
A emigração portuguesa para França, nas décadas de 60 e 70 do século passado, particularmente, a dos norte-alentejanos, em busca da esperança e de melhores condições de vida, representou uma autêntica epopeia, escrita com palavras de sofrimento, coragem e saudade. Está por fazer, ainda, o retrato dessa época em que as aldeias e vilas do Alentejo começaram a ficar desertas e a verem partir, pela calada da noite, os braços válidos e activos dos homens a quem o país negava o essencial de uma vida digna.
Falar de emigração
Nisa, três da tarde, num dia de calor sufocante. A casa, no Boqueirão, onde funcionou durante anos a delegação concelhia da Assistência Nacional aos Tuberculosos, de triste memória, serve agora de Centro de Convívio onde idosos de várias idades podem jogar às cartas, xadrez, dominó, ver televisão ou ler jornais e revistas.
Aí encontrámos um grupo de nisenses, com uma história de vida comum, a da emigração. Três deles demandaram terras de França, e são viúvos. O outro, abalou até Lisboa. Todos, à procura de uma vida melhor.
Percursos de vida que quiseram partilhar connosco e que constituem pequenas amostras da realidade social e política vivida em Portugal nos anos 60.  
Joaquim da Graça Basso, o mais velho do grupo, tem 81 anos, 22 dos quais a trabalhar em França na região de Tours.
“Fui para França em 1965 à procura de trabalho e de melhores condições de vida. Em Nisa estive até aos 35 anos, partia e fornecia pedra para as obras. A minha mulher vendia peixe. Era uma vida de sacrifício e pouco rentável, mas íamos sobrevivendo, até que começou a faltar trabalho e fui obrigado a emigrar. Estive três meses a trabalhar sem contrato, como servente. Depois as coisas compuseram-se e ganhei a minha reforma a trabalhar na construção civil.”
Joaquim Basso não gosta de recordar o que passou para chegar a França e prefere, antes, lembrar o que a vida de emigrante lhe proporcionou.
“Trabalhávamos muito e no duro, mas se não tivesse emigrado nunca poderia ter construído o prédio que tenho e ter pago os estudos ao meu filho que se formou em Medicina. Acho que os emigrantes deviam ser homenageados em Nisa, com um monumento, para que as pessoas não esqueçam o regime que tivemos e a história dos milhares de nisenses que foram obrigados a partir, uma história escrita com sangue, suor e lágrimas”.
Manuel Quintino da Silva Dinis (Manuel Comporta), com 70 anos, é o mais novo dos quatro, e talvez por isso, o que tem mais “fresco” na memória, o drama da emigração.
“Fui para França, “a salto”, clandestinamente, em1966. Trabalhava no campo e ganhava-se pouco. Segui o rumo de outros conterrâneos e do que passei para chegar a Toulouse, fiz umas quadras para registo dos mais novos. Em França trabalhei 3 anos na construção civil e mais tarde numa estação de serviço da Móbil onde passei à reforma, em 1996. Dois dos meus filhos nasceram em França, um foi de cá com mês e meio de vida. Reparto a minha vida entre França e Portugal. Venho muitas vezes a Nisa matar saudades, os meus filhos gostam da terra e também cá vêm.”
Manuel Dinis fala da França com orgulho e gratidão. 
“Deu-me trabalho, uma vida melhor e mais digna. Deu-nos a liberdade que cá não tínhamos e por isso também penso que se justifica uma homenagem aos emigrantes, aos filhos de Nisa que abalaram para França, para outros países e também para Lisboa e outras terras portuguesas. Um monumento seria de inteira justiça, pelo que nós sofremos e pelo que demos ao país.”
António Maria Marquês, 80 anos, não precisou de passaporte de turista, nem de ir “a salto” para rumar até à capital.
“Tinha 34 anos quando abalei para Lisboa. Trabalhava no campo, nem sempre havia trabalho, ganhava-se mal e era preciso sustentar a família. Trabalhei na Presmalte e na Fábrica de Fogões Portugal, na Póvoa de Santa Iria. Reformei-me aos 65 anos e regressei a Nisa. Como me sentia com forças e durante algum tempo ainda trabalhei como servente de pedreiro.”
Gosta de passar a tarde no Centro de Convívio, quando há companheiros e ali se entretém a jogar dominó e a olhar de soslaio algum programa de televisão.
De França, ouve com atenção o que os companheiros lhe contam e dá o seu assentimento à ideia de um monumento aos emigrantes, ele que também foi emigrante no seu próprio país.
António Maria Salgueiro, abalou para França em 1966. Fixou-se na zona onde residem e trabalham a maioria dos nisenses em terras gaulesas, a vila de Azay-le-Rideau, na região de Indre et Loire, no centro de França. Emigrou pelas mesmas razões dos seus companheiros, tendo trabalhado na construção civil e numa fábrica de tijolo.
Reformado, 79 anos, divide a sua vida entre Portugal e França. 
“ A França deu-me a vida que tenho. Cá andava sempre com uma mão detrás e outra à frente. Tenho três filhos, dois estão em França e a minha filha está na Policia, em Lisboa. Gosto de vir a Nisa e encontrar-me com os meus “artilheiros”, passar um pouco de tempo no jardim, no centro de convívio ou a fazer qualquer coisa no campo. Quem se habituou ao trabalho nunca se desabitua. Em França para se ganhar e poupar alguma coisa tínhamos que trabalhar no duro. Não pensem que nos davam o salário e as condições de mão beijada. Não. Por isso, concordo com o que disseram sobre o monumento aos emigrantes e acho que já devia estar feito.
Os nisenses estão bem vistos e integrados em França, principalmente na região de Tours, onde moro. É justo que reconheçam o que nós fizemos pelo país”.
Jaime Cortesão em “Os Emigrantes” escreveu: “ Partir é quase morrer. / Pode ser p´ra nunca mais: / Dentro do peito a bater / Um sino toca a sinais".
Manuel Dinis (Comporta) deixa-nos um relato, em verso, do que foi a epopeia da emigração portuguesa clandestina para França. Um drama que ele próprio viveu e sentiu na pele. Em busca de um futuro melhor!
Mário Mendes in "Alto Alentejo"

A ida de um clandestino de Portugal para França – Anos 60
Abalei da minha terra
Sem dinheiro nem passaporte
Com destino para França
Sujeito a encontrar a morte

Foi de Nisa que parti
Com os olhos todos molhados
Deixando a minha mulher
Há pouco tempo casados.

A Castelo Branco cheguei
Para o passador encontrar
Daí tomámos o rumo
Para um rio atravessar.

Estivemos no meio de um mato
Uma noite e um dia
Cheio de frio e fome
Com a barriga vazia.

Chegámos a uma terra
Que se chamava Naves Frias
Aí estivemos fechados
Cinco noites e cinco dias.

Éramos catorze homens
Dentro deste palheirão
À espera que nos dessem
Um bocadinho de pão.

Daí seguimos viagem
Cansados mas sorridentes
De catorze já passámos
A ser mais de duzentos.

Quando foi à noitinha
Toda a gente se pôs de pé
Foi esta a maior etapa
Quarenta e quatro horas a pé.

Éramos só dois de Nisa
Tinha um bom companheiro
É um rapaz que se chama
O amigo José Salgueiro.

Ao fim de quarenta e quatro horas
Aí parámos então
Para descansar um pouco
À espera de um camião.

... Chegámos então a França
A um monte fomos parar
À espera do bilhete
Para o comboio apanhar.

Doze dias eu demorei
Para este país encontrar
Não desejo a ninguém
Este sacrifício passar.

Todos estes sofrimentos
Toda esta amargura
Para deixar o país
No tempo da Ditadura.

Só os ricos é que mandavam
Nós nem podíamos falar
Podemos “agradecer”
A um chamado Salazar.

É isto que me dá pena
É isto que me revolta
O autor destes versos
Chama-se, Manuel Comporta.

Sem dinheiro para a viagem
Para pagar ao passador
Foi a minha avó Pelota
Que me fez este favor.

Com isto vou terminar
Manuel Comporta me assino
Para que toda a gente saiba
O que foi um Clandestino!

Manuel Comporta - 6 Março de 1966